Um fino termómetro social

A Coleção António Cachola em contexto

Delfim Sardo

1.

Qualquer coleção é o resultado de um cruzamento entre um conjunto de contingências que possuem pesos diversos no conjunto que configuram: a arte disponível no mercado ao tempo da sua constituição, o orçamento disponível para aquisições e aquilo que é visível do que é produzido artisticamente. É sobre estas contingências que se exerce a escolha do colecionador, esse emaranhado de razões e afetos que fazem com que a necessidade de posse seja convertida na necessidade de completude de um conjunto. A escolha do colecionador é, portanto, um ato de responsabilidade individual, em primeiro lugar, mas também um compromisso com a necessidade de configurar um conjunto que faça sentido e que multiplique sentidos.

Numa formulação mais teórica poderíamos dizer que uma coleção é uma série, no sentido em que cada obra, no conjunto da coleção, é explicitada pela outra que lhe faz uma “boa vizinhança”, para usar a expressão de Aby Warburg. Assim, como qualquer série, a ordem das obras pode ser alterada – e as coleções são objeto de exposições que lhes configuram ordens e preocupações internas – mas a capacidade que uma coleção possui de construir panoramas e cenários afeta as obras que a compõem, na medida em que o horizonte interpretativo das obras é desenhado a partir do conjunto que a coleção é. Mais: uma coleção é uma série de séries, constituída por conjuntos no seio do conjunto mais amplo que é o seu corpus. Algumas dessas séries são o resultado da existência de séries no trabalho dos próprios artistas, outras são informais, ou seja, resultam das várias obras de um mesmo artista que instauram a representatividade do artista na coleção, outras ainda são temáticas, explicitadas em exposições e catálogos. A representatividade de uma dada coleção não é, portanto, só a soma das obras que a compõem, mas as teias de critérios que a inscrevem no repositório disponível da arte que, num dado lugar e num dado tempo, é possível ver e conhecer.

Quer isto dizer que a existência de uma coleção afeta o universo da arte e do seu conhecimento, na medida em que a circunstância de aquelas peças – e não outras —  estarem reunidas num conjunto que estabelece sentidos abre um campo no nosso conhecimento possível da arte, mesmo sabendo que o critério que as reuniu muitas vezes não pode ser objeto de uma formulação simples ou única.

Pelo contrário: da configuração ideológica e estética de uma coleção faz parte um critério muito dificilmente definível, frágil mas determinante que é o gosto do colecionador, o que inclui os seus interesses e paixões, a forma como determinados contextos artísticos lhe foram mais próximos, como determinadas obras afetaram a sua sensibilidade.

É por estas razões que uma coleção pode ser um corpo tão interessante, porque as razões subjetivas se cruzam com critérios e circunstâncias objetivos para propor um universo de obras que, de uma determinada forma, efetua um mapa de uma forma de ver e viver a arte e a nossa relação com ela.

2.

A Coleção António Cachola, em exposição no Museu de Elvas, possui todas as determinantes que foram apontadas, mas a sua vontade de se expor, de se dar a conhecer publicamente numa instituição museológica, acresce-lhe uma responsabilidade pública. De facto, a possibilidade de transformar a paixão do colecionismo de arte numa função pública, num serviço à comunidade, acarreta uma responsabilidade assumida publicamente de transformar o núcleo de obras que constituem a coleção numa possibilidade de representação da arte de um tempo.

A representação que António Cachola (num determinado momento com a colaboração do crítico e curador João Pinharanda) concebeu, possui uma paisagem de fundo — a arte que, em Portugal, foi sendo criada pelos artistas que desenvolveram o seu percurso a partir da década de oitenta do século passado, ou que foi a partir deste arco temporal que definiram a sua presença. O início das aquisições, nos primeiros anos da década seguinte, são reveladores da observação de proximidade de que a coleção é testemunho. Esta baliza temporal possui uma clara abertura em termos de futuro – a coleção é aberta e continua em crescimento –, mas não possui um contorno temático ou técnico. A coleção é composta por obras nos suportes e técnicas mais diversos, espelhando a multiplicidade das práticas artísticas contemporâneas. O campo de partida tomado (a década de oitenta) possui um valor paradigmático na transformação da arte em Portugal, na medida em que é o momento no qual a desertificação museológica portuguesa conhece alguma alteração, com o surgimento do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian dirigido por José Sommer Ribeiro, em 1983, e terminando a década com o surgimento, no Porto, da Fundação de Serralves, cuja atividade expositiva se iniciou em 1989, ainda na Casa de Serralves, à época sob a direção de Fernando Pernes. Em relação à abertura do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, é necessário esclarecer que foi concebido no final da década anterior, aprovada a sua edificação em Conselho de Administração de 1979 com um programa que pretendia construir um centro dedicado à arte da década de setenta. Revelador da influência de Ernesto de Sousa e do impacto da Alternativa Zero, exposição realizada em 1977 e que ganhou contornos de ponto de situação sobre o experimentalismo e conceptualismo da arte em Portugal na década de setenta, o CAM viria a constituir, embora com contornos muito diversos da sua ambição inicial, o primeiro museu dedicado à contemporaneidade da arte portuguesa, sabendo que o Museu do Chiado nunca tinha cumprido esse papel. A coleção do CAM, resultado de aquisições que vinham a ser efetuadas, era uma coleção de arte portuguesa com uma presença importante das primeiras vanguardas e estendia-se ao longo do século numa perspetiva abrangente, com um núcleo de arte britânica resultado da própria história da disputa da Fundação entre Portugal e a Grã-Bretanha na década de cinquenta. A coleção do CAM absorveu uma parte significativa da Coleção Jorge de Brito, à data a mais significativa coleção da arte portuguesa moderna. 1985 foi um ano essencial na presença da arte contemporânea em Lisboa: a exposição Diálogo reuniu um obras de um conjunto de importantes museus europeus e ocupou todos os espaços expositivos da Fundação Calouste Gulbenkian e constituiu um momento importante de confronto e conhecimento que só teria paralelo mais tarde, em 1989, na exposição Encontros Luso-Americanos, realizada em colaboração com a Fundação Luso-Americana que vinha, desde 1986, a constituir uma coleção de arte que se revelaria importante na década seguinte.

O início da atividade da Fundação de Serralves na Casa de Serralves marcou o caminho que conduziria à constituição do Museu de Arte Contemporânea em 1999, dez anos depois, já sob a direção de Vicente Todoli.

Nesses anos determinantes da década de oitenta foi surgindo um panorama galerístico em termos inovadores, com o trabalho da Galeria Quadrum de Dulce D’Agro (que vinha a desenvolver-se desde a década anterior), a Galeria Módulo – Centro Difusor de Arte e o surgimento da Galeria Cómicos em sintonia com o pós-modernismo que se começava a desenhar no tecido cultural português. Poder-se-ia dizer que a década de oitenta assistiu a um aggiornamento da arte portuguesa em relação ao panorama europeu e norte-americano, sendo útil ainda invocar a experiência malograda que foi a Bienal de Desenho de Lisboa, a Lis’79, que daria lugar a uma segunda edição, a Lis’81 comissariada por Rudi Fuchs (à época a preparar a Documenta 82  e, portanto, figura de imenso destaque no panorama artístico). A Lis’82 acabou por nunca inaugurar, dado que um incêndio destruiu a exposição já em fase final de montagem, tendo também terminado com a programação da Galeria Nacional de Arte Moderna, a Belém, onde a exposição se realizava. O colecionismo público português encontrava-se em fase de lento crescimento, com a coleção da FLAD em constituição (primeiro sob consultoria de Manuel Costa Cabral, posteriormente de Rui Sanches e finalmente de Manuel Castro Caldas), a Coleção de Serralves ia dando os seus primeiros passos e a coleção da Secretaria de Estado da Cultura, com aquisições propostas através de uma comissão de que faziam parte Fernando Calhau, Fernando Azevedo e Fernando Pernes, ia crescendo a um ritmo lento, mas com contornos internacionais. A coleção do Chiado encontrava-se parada, com um arco temporal que desaguava em 1950, e o próprio museu veio a encerrar as portas em 1988, em consequência do incêndio do Chiado, tendo vindo a reabrir com um projeto arquitectónico de Jean Villmote na década seguinte, sob a direção de Pedro Lapa – e expandindo o campo de ação até à arte contemporânea.

Neste tecido de alterações os percursos artísticos vão-se constituindo, agora já com um mínimo suporte institucional. Por um lado, há um tecido de colecionismo institucional emergente; por outro lado, a possibilidade de ir desenhando um percurso em Portugal, com exposições que servidas por catálogos razoavelmente esclarecedores do trabalho apresentado; por fim, algum confronto com a arte internacional, vai produzindo grupos de artistas que se afirmam entre o ressurgimento da pintura, a influência do movimento Neue Wilde, o surgimento da Transvanguarda italiana e o despontar da fotografia e do vídeo como ferramentas artísticas que se vão vulgarizando a partir do final da década. Este panorama, no qual pontificam a exposição Depois do Modernismo, realizada na Sociedade Nacional de Belas Artes em 1982, ou a exposição Continentes, de 1986, é o campo que germinaria uma nova cultura artística, voltada para Nova Iorque, consumidora da Artforum e da Art in America, as revistas de referência.

Seria, no entanto na década seguinte que o panorama português conheceria o segundo grande salto, com a abertura de um conjunto de galerias de arte em Lisboa (Graça Fonseca, Alda Cortez, Palmira Suso, Nasoni), bem como no Porto (Roma e Pavia que se converteu em Pedro Oliveira, Quadrado Azul) começando a constituir-se um panorama galerístico com uma programação mais intensa do que a visível nas poucas instituições museais.

Na época em que se começa a constituir a coleção António Cachola abrem ao público duas instituições de difusão artística que ocupariam lugares de destaque, ambas em 1993: O Centro Cultural de Belém e a Culturgest. Embora o CCB não possua coleção (albergou um núcleo de coleção do Instituto de Arte Contemporânea cuja constituição esteve a cargo de Isabel Carlos e a coleção Berardo esteve aí em depósito desde 1998 até à criação do Museu Berardo, precisamente no mesmo espaço), a abertura do centro de exposições que haveria de se transformar em centro de arte contemporânea sob a direção de Margarida Veiga constituiu um foco de divulgação do contemporâneo importante. A Culturgest seria constituída em simultâneo com a reformulação da coleção da Caixa Geral de Depósitos — dirigida por Fernando Calhau desde 1993 a 1995, período em que se restruturou como uma coleção de referência para a arte portuguesa contemporânea, centrada nos nomes que haviam sedimentado a sua posição entre as décadas de setenta e oitenta.

É neste cenário que a coleção Cachola foi encontrando o seu espaço, precisamente incidindo nos artistas que as instituições ainda não colecionavam.

3.

O primeiro momento de apresentação da Coleção Cachola deu-se em 1999, não em Portugal mas em Espanha, no Museu Estremeño Iberoamericano de Arte Contemporânea dirigido por António Franco. O projeto do MEIAC, situado na zona raiana, sempre foi o de constituir pontes entre os cenários artísticos dos dois países ibéricos e a coleção Cachola, sediada em Elvas, era quase simbólica da possibilidade de constituição desse diálogo fora dos grandes centros, ou trabalhando no sentido de um recentramento das vias de circulação artísticas. É na preparação dessa exposição que se desenhou a colaboração de João Pinharanda com a Coleção, aconselhando e comissariando a exposição no MEIAC. A seleção de obras em exposição é particularmente interessante e reveladora de algumas tendências da coleção: por um lado, existe uma atenção aos artistas surgidos na década de oitenta, com uma presença do grupo Homeostético (Pedro Portugal, Xana e Pedro Proença), uma representação significativa de José Pedro Croft, Pedro Casqueiro, Pedro Calapez, Rui Chafes, Rui Sanches e  Ilda David. Curiosamente, esta seleção passa ao lado do artista (hoje representado na coleção) mais influente surgido no período, Pedro Cabrita Reis, sendo de registar a presença de outros artistas que vinham a desenvolver presenças mais discretas, como Manuel Rosa. Notável é, no entanto, a atenção que é dedicada a artistas muito jovens cujo trabalho tinha vindo a surgir publicamente muito recentemente, com a aquisição de obras que, hoje, é evidente serem estruturantes no (s) seu (s) percurso(s). É o caso de Joana Vasconcelos, Pedro Gomes, Noé Sendas, todos oriundos do Curso Avançado de Artes Plásticas do Ar.Co (bem como artistas com menor continuidade no seu percurso público como Hugo Guerreiro e Gil Amorous), escola de Arte marcante para uma geração de artistas emergentes na década de noventa em Lisboa, como aliás para alguns professores, como João Queiroz, Pedro Calapez, Miguel Branco e Rui Sanches. Mas é também reveladora de uma atenção a uma geração que acabava de sair da Faculdade de Belas Artes de Lisboa: João Onofre, Rui Toscano, Marta Soares ou Ana Pinto. Os restantes artistas representados constituem chegadas tardias mas marcantes ao reconhecimento público, como Fernanda Fragateiro, João Queiroz ou Ângela Ferreira, dos quais foram adquiridas obras particularmente significativas, hoje essenciais em qualquer retrospetiva destes artistas. Esta primeira exposição da coleção Cachola foi determinante no desenvolvimento do caminho que teria um corolário importante em 2007, ano em que abriu o Museu de Arte Contemporânea de Elvas, resultado do empenho da autarquia em integrar a coleção num projeto museológico cuja programação foi entregue a João Pinharanda que orientou o projeto até 2010.

O segundo momento importante no percurso expositivo da Coleção Cachola deu-se, precisamente com a exposição inaugural que revelava já um aprofundamento considerável da coleção e uma noção muito precisa da oportunidade das escolhas. Entre 1999 e 2007 a coleção desenvolveu-se e aprofundou-se, tendo demonstrado atenção particular em relação às obras de alguns artistas, mas também alargado significativamente a sua incidência. Na exposição inaugural do Museu de Elvas era evidente um aprofundamento do interesse e uma reforçada presença da obra de José Pedro Croft, a continuação da presença de Fernanda Fragateiro, Rui Chafes, Rui Sanches e Pedro Calapez e o surgimento das obras de Jorge Molder e Noé Sendas, mas é notória a crescente importância na exposição de artistas surgidos durante a década de noventa, com uma tónica para a presença de Joana Vasconcelos, com duas obras icónicas da artista e das mais importantes do seu percurso, mas também a inclusão atenta de Vasco Araújo e João Pedro Vale, artistas em início de carreira.

Esta abertura e intensificação são de atentar um pouco mais, porque pertencem a duas formas de entender o colecionismo que aqui estão patentes: normalmente as coleções dividem-se em duas categorias, as coleções intensivas e as extensivas, ou seja, as coleções que se dedicam a um número restrito de artistas e acompanham o desenvolvimento dos seus percursos, e as coleções que efetuam cortes sincrónicos num leque amplo de artistas. A coleção Cachola foi desenvolvendo uma estratégia mista, quer alargando o espectro de artistas que foram sendo adquiridos , quer acompanhando os desenvolvimentos da arte praticada por artistas portugueses, com uma particular atenção às situações emergentes; simultaneamente, no entanto, foi efetuando aquisições e acompanhando o percurso de alguns artistas de forma intensiva. Já na exposição de 2007, como afirmámos, era evidente o interesse pela obra de José Pedro Croft em dois campos específicos, a gravura e a escultura. No caso da escultura, a aquisição de conjuntos de obras que configuram possibilidades de instalação conjuntas conferiu ao núcleo uma significativa representatividade; no entanto, no campo da gravura – que Croft tem praticado regularmente ao longo do tempo –, a opção de aquisição de séries particularmente longas realizadas a partir da exploração de uma chapa, progressivamente reutilizada e alterada, confere ao núcleo de gravuras da coleção um caráter exemplar, na medida em que estabelece a matriz de grande parte do processo de trabalho posterior, sendo inevitável a sua inclusão em qualquer abordagem extensiva do percurso de Croft. Outra situação interessante acontece com Jorge Molder, de quem o colecionador optou pela aquisição de uma série particularmente longa, Anatomia e Boxe, provavelmente o projeto serial que mudou o percurso do artista e se revelou estruturante para outras séries que realizou posteriormente, nomeadamente a série Nox com que representou Portugal na Bienal de Veneza de 1999. Recentemente a opção que o colecionador tomou em relação a Julião Sarmento – artista que não se encontrava representado  – foi semelhante, tendo adquirido o conjunto de retratos fotográficos de mulheres que apresentou na exposição comissariada por Sérgio Mah (que teve lugar na Fundação Arpad Szenes/Vieira da Silva em 2010). Este conjunto de imagens fotográficas constitui uma espécie de matriz mnemónica fotográfica do trabalho de Julião Sarmento nos vários suportes que o artista tem vindo a usar e, nesta escolha, é também visível a vontade de incluir obras que possuem um caráter fundacional.

 4.

A preocupação pela inclusão de artistas emergentes, se era notória desde o início (ou pelo menos a partir da primeira vez em que a coleção se revelou publicamente, em 1999), veio a intensificar-se e a revelar critérios apurados de escolha. Em termos gerais poderíamos mesmo verificar que a coleção se foi constituindo como um importante repositório de obras criadas por artistas que correspondem a uma geração nascida após a revolução de 1974, portanto de artistas que viveram uma situação de abertura no seu percurso formativo, inédita para os artistas de gerações anteriores que necessitaram de encontrar formas de se ligarem aos percursos da arte internacional do seu tempo. Curiosamente, a Coleção faz agora coexistir artistas que nasceram quando outros afirmavam o seu percurso, assumindo essa componente inter-geracional. Este dado é particularmente relevante em países que possuíram regimes totalitários prolongados (como Portugal e Espanha, por exemplo) nos quais é patente a criação de fossos entre gerações de artistas, frequentemente desencontrados nos processos migratórios a que as situações politicamente (económica, cultural e socialmente, também) opressivas iam compelindo.

De uma forma interessante, a exposição realizada no Museu Berardo em 2010 – a mais extensa até à data –, possuía essa qualidade política de partir de uma situação já alheia às tensões e contradições da relação entre modernidade e localidade que perpassaram pelas gerações afirmadas na década de setenta, para produzir um fresco da arte contemporânea criada em Portugal. Não é despicienda a declaração do colecionador de que não se trata de efetuar uma representação da arte portuguesa, mas da arte criada por artistas portugueses (António Cachola, 2010), na medida em que muitas das obras dos artistas que iniciaram o seu percurso na década de noventa ou já neste século foram concebidas em permanências e residências fora de Portugal, operando numa diáspora que tem vindo a estabelecer circuitos de divulgação e permeabilidade num panorama globalizado.

Porventura uma das consequências desta abertura geracional consiste na convivência, na coleção, de dispositivos artísticos muito diversos, coexistindo a pintura, com a performance, a escultura — em sentidos muito diversos —  a instalação, o vídeo, a fotografia, o desenho, o filme, a gravura e categorias híbridas. Mais interessante do que verificar esta diversidade, típica do período a que a coleção se tem dedicado, é a constatação de que muitos dos artistas estão representados com obras em suportes variados, como José Pedro Croft com escultura e gravura, Fernanda Fragateiro e Pedro Barateiro com escultura e fotografia,  Rui Chafes com desenho e escultura, Bruno Pacheco com pintura e vídeo, por exemplo. Mesmo algumas categorias facilmente tipologizáveis, como o vídeo, incluem obras que pertencem a domínios muito diversos de utilização do suporte, desde os chamados “task vídeo” (como as peças videográficas de Bruno Pacheco ou as obras iniciais de João Onofre), a que Rosalind Krauss (Krauss, 1979) chamou “a natureza narcísica do vídeo”, até ao uso do vídeo que trabalha sobre a natureza técnica do suporte (como é o caso de Alexandre Estrela) na esteira do vídeo experimental dos anos setenta, passando pelo vídeo narrativo e o cinema (com Gabriel Abrantes, Pedro Paiva e João Maria Gusmão e Filipa Cesar), por vezes usando dispositivos técnicos arqueológicos, como o super 8mm e o 16mm, ou recorrendo a arquivos e à reconstituição de narrativas do passado colonial português.

Também na pintura, o leque de interesses da coleção oscila entre um tratamento linguístico e instrumental  (como acontece com João Louro), passando por práticas pictóricas de diálogo com a questão ampla da imagem (como se passa com Bruno Pacheco) até à pintura como operação sobre as condições perceptivas e cognitivas propiciadas pelo próprio médium como pratica João Queiroz ou, em sentidos muito diversos, José Loureiro ou Pedro Casqueiro. Enfim, poderíamos estabelecer o mesmo tipo de raciocínio em relação à escultura, na medida em que a obra escultórica de José Pedro Croft, na relação de linhagem que estabelece a partir das enantiomorphic chambers de Robert Smithson e a escultura pós minimal, pertence a outra forma de pensar a escultura em relação ao paradigma da poética da construção e do vernáculo que  perpassa pela obra de Pedro Cabrita Reis, ou à estratégia da imagem herdada do universo pop de Joana Vasconcelos, ou ainda em relação à questão política e comunitária que está inscrita nos percursos de Ângela Ferreira e Fernanda Fragateiro, para mencionar artistas com representações significativas na coleção.

Por fim, a forma de acompanhamento que o colecionador foi realizando, permite encontrar mudanças e alterações nos próprios percursos dos artistas, sendo claro que os caminhos seguidos pelos artistas não se desenvolvem de forma linear, sendo o resultado de mudanças no modo de fazer e de pensar. João Pinharanda, Diretor do Museu de Arte Contemporânea de Elvas entre 2007 e 2010, chama a atenção para o lado programático da coleção no sentido do acompanhamento dos percursos dos artistas (Pinharanda, 2007), reivindicando mesmo para a coleção essa característica, em si mesmo uma qualidade que possui uma componente de rigor historiográfico, propiciando visões transversais aos percursos individuais.

Podíamos mesmo dizer que essa é a principal dimensão ética da Coleção Cachola: a sua determinação de disponibilização pública está intimamente ligada ao compromisso que desenhou de acompanhamento do percurso dos artistas nela presentes, contrariando alguma tendência enciclopédica presente noutras coleções em acesso público.

5.

 A questão do acesso público da coleção foi-lhe sempre inerente, sobretudo a partir do momento fundador que foi a exposição do MEIAC de 1999.

Este livro, um primeiro volume abrangente, mas não total, da Coleção António Cachola, reúne um conjunto de obras significativo, resultado de uma leitura da Coleção e dos seus momentos mais marcantes, das diversas temperaturas do processo de aquisições e das contingências da documentação existente das obras e da sua disponibilidade. Pretende dar conta da amplitude das escolhas do colecionador e constituir um documento de referencia de um momento do espólio, a que, certamente, se seguirão outros.

No nosso País, a obra dos artistas portugueses, mostrados em contexto nacional ou internacional, é particularmente rara nas opções museológicas que têm grassado. Nem a coleção do Museu de Serralves, nem a coleção do Centro de Arte Moderna, nem a coleção do Museu do Chiado, nem a Coleção da Caixa Geral de Depósitos (só para mencionar as mais significativas) está em exposição permanente, ou possui núcleos significativos de exposição permanente – gerando uma situação curiosa de vazio. É interessante notar como este vazio se segue a uma situação global de protecionismo na opção por coleções exclusivamente portuguesas por parte das instituições: a coleção do CAM (excetuando o núcleo britânico, congelado no tempo) é uma coleção de arte portuguesa, bem como a coleção da Caixa Geral de Depósitos (também com um pequeníssimo núcleo de artistas brasileiros e africanos) e a coleção pública do Museu do Chiado. Curiosamente, na especificidade destas coleções, não parece ter vindo a ser cumprido tão pouco o seu desígnio, na medida em que as políticas de aquisição, sobretudo nos anos mais recentes, têm sido particularmente mitigadas, quando não pura e simplesmente paradas.

A consequência é paradoxal: nenhuma das coleções historicamente mais relevantes em Portugal possui uma sintonia entre o seu desenho e a capacidade institucional de cumprir o desígnio que as instituições para si mesmas elegeram, não colocando em escrutínio público a sua (presente ou passada) política de aquisições, não se encontrando disponível nenhuma visão mais ou menos transversal da criação por artistas portugueses contemporâneos.

Nesse sentido, a Coleção Cachola, na sua escala e estratégia, cumpre um papel fundamental, sendo um repositório essencial para quem quiser compreender um pouco das transformações artísticas do Portugal inserido na Comunidade Europeia (que corresponde, genericamente, ao arco que a coleção tomou como seu).

De facto, nenhuma outra coleção disponível publicamente revela de forma tão ampla as transformações do Portugal dos últimos vinte e cinco anos, desde a tónica nas questões identitárias, passando pela expansão económica, a vivência traumática do fim do império, o fascínio pela globalização, as idiossincrasias da escala, as novas migrações, a ironia ou o encantamento em relação ao futuro.

Esta apreciação não é só válida no interior do campo artístico: a coleção António Cachola contribui para uma fina avaliação da temperatura social – e esta não é, certamente, a menor das suas virtudes.

Delfim Sardo